sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Cachorro Morto

Você conhece a expressão “chutar cachorro morto”.
Já visualizou essa cena? Alguém chutando um cachorro morto?
Feio demais. Nada heróico.
Chutar um Pitt-bull é outra coisa. Aquele bicho furioso, babando, te mostrando os dentes. Dá até um frio na barriga.
Partir pra cima desse monstro requer muito culhão.
Leio diariamente artigos, livros, matérias e vejo palestras sobre religião. Ataques da razão, da ciência.
Tem vezes que eu me pergunto se isso não é chutar cachorro morto. E tem vezes que eu me pergunto se essa piedade não é um resquício de cristianismo em mim.
Eurípedes bradava pela boca de seus atores que “os deuses não existem”.
Sócrates ensinava que os deuses somos nós mesmos.
Platão dizia que a fé estava morta.
Empédocles já falava em evolucionismo em 460ac.
Anaxágoras deixava qualquer sacerdote puto com suas explicações lógicas.
Diógenes perguntava aos clérigos por que eles não se matavam, já que o céu era tão bom.
Um pouco mais à frente no tempo temos alguns Voltaires, Schopenhauers, Nietzsches... Sem falar dos Daniel Dennets, Karen Armstrongs e Richard Dawkins.
Na minha frase favorita sobre o tema, um Fernando Pessoa disse que a fé podia ser derrubada por um “golpe de raciocínio”.
Me parece (às vezes) que não necessitamos de tanto esforço pra vencer algo já vencido a tanto tempo.
Na época que a religião era um Pitt-bull, uns poucos corajosos meteram-lhe umas bicas, e acabaram pendurados em postes, apedrejados e queimados vivos.
Mas hoje esse cão bravo pode pouco. Ninguém mais morre gritando entre chamas por dizer que é uma estupidez terrível acreditar em Deus.
É aí que eu penso melhor e vejo que esse cão pode pouco, mas ainda pode.
É só você ligar a TV à tarde, noite, de madrugada... Brincar de quantas igrejas evangélicas tem no caminho do trabalho ou da padaria. Ver os atentados no Oriente Médio. Ler notícias sobre transferências milionárias das contas de pastores. Descobrir que filhas de pais judeus ainda sofrem mutilações nas genitálias.
Foda.
Da raiva de ver o papa visitando a África e dizendo que usar camisinha é pecado. Ele não faz nada de errado, tá seguindo o protocolo católico. O problema mesmo é que na África as pessoas ainda morrem aos milhares de AIDS e ainda acham que se livram do vírus tomando um banho.
Na África também, os pais assassinam ou abandonam os filhos porque os pastores de lá dizem que algumas crianças são bruxas.
Aqui no Brasil uma menina que fez aborto e os médicos que a operaram foram excomungados pela Igreja. Não adiantou dizer que ela engravidou porque foi estuprada pelo padrasto e que nem todos os médicos eram católicos: todos condenados ao Inferno.
Esse cachorro não está morto, me convenço.
Uma vez tomei uma mordida de uma pastor alemão numa delegacia. Os policias me socorreram e tocaram ela dali. Me disseram que por muitos anos ela rasgou a carne de bandidos, mas que agora, velha e cansada, ainda sonhava em cravar os dentes nos outros. Instintos intactos. Menos seus dentes.
Tomei apenas a pancada da mordida de uma cachorra desdentada.
Fiquei olhando ela ali no cantinho dela, quieta, de cabeça baixa... Só esperando passar o próximo otário.
Considerei minha sorte.
Se ela tivesse dentes, eu teria que passar parte do dia no hospital tomando injeções e sendo costurado.
Igualmente, se eles padres, rabinos, pastores pudessem... Eu estaria amarrado numa fogueira por essa analogia.
Mesmo desdentada, ainda mordia forte. Ai se tivesse dentes.
Não é heróico como em outros tempos, mas devemos chutar, chutar forte, até eles caírem. Golpes de raciocínio.
Pra que a ciência voe como um míssil, pra que os nossos filhos cresçam sem os temores dos nossos avós, pra que mulher nenhuma seja apedrejada em lugar algum no mundo, pra que as pessoas sejam livres pra pensar, agir, falar, questionar.
Pra viver sem medo. Sem medo da verdade.
Sem medo de um cachorro velho.

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